
Foto Ilustrativa
Com a chegada do inverno, as campanhas de arrecadação de agasalhos, roupas e alimentos ganham força em todo o país, mobilizando pessoas físicas e instituições públicas a buscar ajudar para famílias em situação de vulnerabilidade social. No entanto, junto com essa onda de solidariedade, surge um debate importante sobre os limites éticos da exposição dessas famílias, especialmente de crianças e adolescentes, em imagens e vídeos divulgados nas redes sociais e meios de comunicação. Embora as ações tenham boas intenções, especialistas alertam para os riscos emocionais e legais que podem comprometer a dignidade e a privacidade daqueles que deveriam ser protegidos.
Segundo o psicólogo Luti Christóforo, a exposição pública pode afetar profundamente a autoestima, a identidade e o sentimento de pertencimento das crianças. Ele explica que “a exposição pública de crianças em situação de vulnerabilidade social pode causar uma série de impactos psicológicos, especialmente no que diz respeito à autoestima, à identidade e à sensação de pertencimento”.
Além disso, ele ressalta que o consentimento dos responsáveis nem sempre garante que a exposição seja ética ou consciente: “Muitas vezes, os pais ou cuidadores dessas crianças também vivem em situação de carência de informação, de recursos ou de suporte, o que pode dificultar a tomada de decisões conscientes quanto aos efeitos da exposição.”
A psicóloga Ana Paula Magosso complementa essa visão ao destacar que a exposição pode intensificar sentimentos negativos nas crianças, como vergonha, discriminação e marginalidade, afetando sua autoestima. Ela recomenda que as famílias sejam envolvidas no planejamento das ações para que possam opinar sobre como querem ser retratadas: “Recomenda-se que as famílias sejam envolvidas desde o planejamento da ação, opinando na forma de como retratar essa situação, o que gostariam de dizer e tornar essa uma possibilidade de dar voz ao que querem e não conseguem dizer.”
Outro ponto importante é levantado pela psicóloga Ana Paula Machado, que alerta para o uso de imagens chocantes em campanhas para incentivar doações, estratégia que pode gerar mais culpa do que empatia no público. Ela compara essa prática às campanhas anti-tabagismo que utilizam imagens fortes, mas pouco impactam a conscientização real: “A intenção não é sensibilizar, mas chocar… mas o sentimento de culpa pode ser o gatilho maior e não por sensibilidade e compaixão.”
Aspectos legais e cuidados necessários
Do ponto de vista jurídico, a advogada Karina Gutierrez explica que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) impede a divulgação de imagens que possam identificar crianças e adolescentes. Ela destaca que “a lei autoriza a divulgação dos fatos, desde que sem exposição da imagem e sem detalhes que levem à identificação da criança ou de sua família”.
Para isso, é fundamental que as autoridades públicas obtenham autorizações claras e formalizadas com os responsáveis, além de contar com comitês multidisciplinares para acompanhar a correta utilização dessas imagens. Segundo Gutierrez, “as autoridades públicas deverão, primeiramente, obter a autorização dos pais para utilização das imagens… É importante… formarem comitês multidisciplinares compostos por profissionais de todos os setores envolvidos…”
Complementando esse ponto, a advogada Ana Paula de Assis Matias alerta que, mesmo com consentimento, a exposição pode violar direitos fundamentais, comprometendo a dignidade dos menores e configurando uso exploratório da imagem para promoção institucional. Ela recomenda priorizar imagens institucionais e respeitar o anonimato dos beneficiários: “É plenamente possível dar visibilidade às iniciativas de assistência social sem expor ou identificar os beneficiários… a captação de imagens deve ser realizada de modo a não identificar os rostos das pessoas atendidas, respeitando sua integridade e anonimato.”
Evitar que a solidariedade vire espetáculo
Os especialistas também chamam atenção para o risco de transformar a solidariedade em espetáculo midiático, o que pode reforçar estereótipos e desigualdades sociais. Christóforo explica que “a linha entre solidariedade e espetáculo é muito tênue” e que a solidariedade verdadeira “é silenciosa, respeitosa, discreta e humanizadora.”
Na mesma linha, Ana Paula Magosso destaca que é importante evitar relatos longos que estimulem o voyeurismo, propondo uma comunicação que incentive o engajamento por meio do que foi realizado: “Colocar o que é feito ajuda a incentivar outros a fazerem.”
Especialistas recomendam que campanhas usem narrativas que valorizem a autonomia das famílias beneficiadas, evitando reforçar imagens de passividade ou dependência.
Caso recente reacende debate sobre exposição
Um episódio recente em Natividade, no Noroeste Fluminense, reacendeu a discussão sobre os limites éticos na divulgação de imagens de crianças vulneráveis. No dia 12 de julho, o prefeito Marcos Antônio Toledo (Taninho) publicou vídeo nas redes sociais mostrando a entrega de cobertores a uma família do bairro Tubiacanga, com a participação das crianças beneficiadas. A publicação, que trouxe o relato do pedido de ajuda feito por uma mãe, anunciou também o lançamento do “Mutirão do Agasalho”, uma campanha municipal para atender outras famílias cadastradas no CadÚnico.